domingo, 9 de outubro de 2011

Sugestao de leitura para o mês

Nietzsche
para estressados
Sextante
Filosofi a para o dia a dia
NIETZSCHE PARA ESTRESSADOS é um manual inteligente, provo cador e
estimulante que reúne 99 máximas do gênio alemão e sua aplicação
prática a várias situações do dia a dia. A fi losofi a de Nietzsche
é de grande utilidade na busca de uma solução para uma série de
problemas, tanto na vida pessoal quanto na profi ssional.
Este breve curso de fi losofi a cotidiana foi criado para nos
auxiliar naqueles momentos em que precisamos tomar decisões,
recuperar o ânimo, encontrar o caminho certo quando estamos
perdidos e relativizar a importância dos fatos da vida. É indicado
para pessoas que procuram inspiração no pensamento do fi lósofo
mais infl uente da era moderna para combater as angústias e os
medos dos dias de hoje.
Cada capítulo é iniciado por um aforismo desse grande
pensador, seguido de uma interpretação atual que nos ajuda a
alcançar o bem-estar.
No fi nal, há um anexo que explica o valor terapêutico da fi -
losofi a e suas aplicações no cotidiano. Conheceremos o trabalho
dos fi lósofos terapeutas, popularizado pelo livro Mais Platão,
menos Prozac, de Lou Marinoff, e e ntenderemos como máximas
dos pensadores de todos os tempos podem oferecer uma ajuda da
melhor qualidade.
Antes de conhecer seus pensamentos, saiba um pouco sobre a
vida do grande mestre.
5
Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu em 1844, na cidade alemã
de Röcken. Seu pai era pa stor evangélico e faleceu quando o
fi lho tinha 5 anos. O menino cresceu em um ambiente de pietismo
protestante dominado por mulheres.
Após frequentar um internato, onde foi apresentado à Antiguidade
grega e romana, estudou fi losofi a clássica nas universidades
de Bonn e Leipzig. Nessa última, entrou em contato com as
ideias de Schopenhauer e com a música de Wagner, compositor
que admirava e que mais tarde conheceria pessoalmente.
Em 1869, com apenas 25 anos, Nietzsche já era professor de
fi lologia clássica na Universidade da Basileia. No entanto, sua
atividade docente foi interrompida em 1870, quanto estourou a
Guerra Franco-Prussiana.
Nietzsche participou do confl ito como enfermeiro, até ser
obrigado a abandonar o front por causa de uma disenteria, da
qual nunca se recuperou totalmente.
Em 1881, conheceu Lou Andreas Salomé, mulher por quem
se apaixonou perdidamente mas que acabaria se casando com
um amigo seu. A rejeição ajudou a consolidar sua proverbial
misoginia.
Obrigado a se aposentar prematuramente por conta de sequelas
da doença, Nietzsche viveu na Riviera francesa e no norte
da Itália, lugares que considerava ideais para pensar e escrever.
Sozinho e frustrado por suas obras não alcançarem a acolhida
desejada, foi vítima de seus primeiros acessos de loucura em
1889, quando morava em Turim e estava praticamente cego.
Após longas temporadas internado em clínicas da Basileia e
de Jena, Nietzsche passaria o fi m da vida na casa da mãe, que cuidou
dele até morrer, deixando-o ao encargo da irmã. Nietzsche
faleceu em 1900.
Seu ambicioso legado fi losófi co até hoje não perdeu o poder
inspirador e instigante.

O OVO

O OVO

“Os ovos são comprados em supermercados e guardados em geladeiras. Eles vêm em caixinhas de papelão, algumas com 6, outras com 12 ovos. Todos os ovos têm a mesma forma, a forma oval. Eles se compõem de três partes: a casca, a gema amarela e a clara transparente. Os ovos são distinguidos pela cor da casca: há os ovos de casca branca e os ovos de casca parda. Os ovos são muito úteis na cozinha e podem ser comidos crus, quentes, cozidos ou fritos. Em misturas eles são usados para fazer ovos mexidos, omeletas, bolos, e pães. E há também os doces: fios de ovos, papo-de-anjo. E mesmo licores. Para serem usados é preciso quebrar a casca, o que exige uma certa prática. Não se quebrando a casca do jeito certo o ovo se arrebenta e a mão fica toda lambuzada com a mistura de gema e clara. Os ovos precisam ser tratados com muito cuidado, por causa da sua fragilidade. De uma pessoa cheia de cuidados usa-se dizer: “Está andando sobre ovos“. Se ficam guardados durante muito tempo fora da geladeira, os ovos apodrecem e fedem muito se quebrados. Por essa razão eles são frequentemente usados por cidadãos descontentes que os jogam nos políticos que os enganaram. Não sei se a palavra “ovacionar“ vem desse costume. Li num livro de ciências que os ovos saem de dentro das galinhas. Eu acredito porque está escrito no livro. Mas eu nunca vi uma galinha botando um ovo. Li também no mesmo livro de ciências que os ovos, se aquecidos a uma temperatura determinada durante 21 dias, produzem pintinhos, que são os filhinhos amarelos das galinhas. Meu pai me disse que os ovos constituem um problema filosófico impossível de ser resolvido. “O que foi que veio primeiro, o ovo ou a galinha? Se dissermos que foi o ovo que veio primeiro, fica a pergunta: onde estava a galinha que o botou? Se dissermos que foi a galinha que veio primeiro, fica a pergunta: e onde estava o ovo de onde ela teria de ter saído como pintinho?“

Essa é uma redação que escrevi de brincadeira, para contar a vocês a minha experiência com os ovos, quando eu era pequeno, na roça. Os ovos que conheci são muito diferentes dos ovos que vocês conhecem. As pessoas da cidade, quando pensam em ovos, pensam nas comidas que podem ser feitas com eles. Pensam do ovo para a frente... Eu pensava do ovo para trás. O que me fascinava era o nascimento dos ovos. Na roça os ovos não se compravam em supermercados. Eles eram encontrados e colhidos em ninhos. Que coisa mágica é um ninho! Encontrar um ninho escondido no meio do mato, cheio de ovos, é uma experiência de grande felicidade, inesquecível! Gaston Bachelard: não se assustem com esse nome complicado. Foi um homem maravilhoso, que escreveu coisas incríveis. Espero que vocês, um dia, tenham a alegria de viajar pelo mundo encantado que se encontra nos seus livros, muito mais fantástico que o mundo do Harry Potter. O mundo do Harry Potter, a gente sabe que nunca existiu. Mas Bachelard mostra um mundo maravilhoso, mágico, encantado, no meio do mundo real em que vivemos. Para ele uma experiência mágica é encontrar um ninho com uma passarinha a chocar seus ovos, num arbusto do jardim. Para mim, cinco anos, não havia nada que se comparasse em fascínio a uma galinha botando um ovo. Ela, deitada no ninho, esforçando-se para botar seu ovo diário. Eu, atrás, agachado, observava atentamente o seu fiofó que pulsava, abrindo e fechando, até que o ovo aparecia. Eu cutucava o ovo com a ponta do dedo. Saído o ovo, a galinha se levantava, observava sua obra e saía pelo quintal cacarejando em altos brados o seu feito.

Como as galinhas são animais inteligentes! Inteligentes, as galinhas? Que nada. Galinhas são animais estúpidos. Inteligentes são os golfinhos, as focas, os cães, os cavalos, os elefantes, os ursos. Tanto que são animais de circo. Mas eu nunca soube de uma galinha que fosse artista de circo.

A burrice das galinhas se revela num fato muito simples: toda vez que um carro delas se aproxima, numa estrada, elas atravessam a estrada correndo e gritando espavoridas. Nunca aprendem que é mais seguro ficar onde estavam. A despeito disso eu insisto: as galinhas são inteligentes. Como é que a gente identifica a presença da inteligência? É simples. Uma amiga, sabendo que gosto de brinquedos, me deu um carrinho feito com uma lata de sardinha e rodas cortadas de uma sandália havaina. Quando vi o carrinho percebi logo que ele fora feito por um menino pobre. Menino rico não faria carro com lata de sardinha. Compraria um carinho na loja. O dinheiro faz mal à inteligência. E percebi mais: aquele menino, que eu não conhecia, era um menino inteligente. Por que concluí que ele era inteligente? Porque o carrinho que ele havia feito era um objeto muito inteligente. Há objetos que são inteligentes, como há objetos que são muito estúpidos. Sempre que tivermos na mão um objeto inteligente – um livro, um brinquedo, uma máquina, uma escultura – podemos concluir: “Foi feito por uma pessoa inteligente.“

E agora eu pergunto a vocês: pode haver uma coisa mais inteligente que o ovo? Se o ovo é um objeto inteligente temos de concluir que a galinha que fez e botou o ovo, é inteligente. Todas as aves do mundo botam ovos. Botam ovos porque, mesmo antes de botarem um ovo, já mora nelas a idéia inteligentíssima do ovo. As aves já nascem com essa idéia. Temos, então, de concluir que dentro da galinha, tal como acontece com todas as aves, mora a idéia inteligentíssima do ovo. Mora aonde? Não mora na cabeça da galinha, que é estúpida. Mora no corpo da galinha, sem que a cabeça saiba disso. As galinhas são estúpidas com a cabeça e inteligentíssimas com o corpo. Existe também o contrário, entre os humanos: pessoas que são inteligentíssimas com a cabeça e totalmente estúpidas com o corpo.

O corpo da galinha sabe muito de geometria. Foi o ovo que me contou. Porque o ovo é um objeto geométrico construído segundo rigorosas relações matemáticas. A galinha nada sabe sobre geometria, na cabeça. Mas o corpo dela sabe. Prova disso é que ela bota esses assombros geométricos.

Sabe muito também sobre anatomia. O ovo não é uma esfera. Ele tem uma parte mais grossa e uma parte mais fina. Há uma razão físico-anatômica para isso. É a mesma razão por que os pregos têm uma ponta fina: para entrar melhor no buraco. Você já enfiou uma linha no buraco de uma agulha? Primeiro é preciso afinar a ponta da linha com saliva e dedo. É a ponta afinada da linha que entra no buraco da agulha. Depois que a ponta fina passa pelo buraco, é fácil puxar a linha, fazendo passar a parte grossa. Pois o ovo tem de ter uma ponta fina para facilitar a sua passagem pelo fiofó da galinha. Se não tivesse a ponta fina ia ser mais difícil, ia doer mais...

O corpo das galinhas é também um grande conhecedor de arquitetura. A forma do ovo dá resistência máxima aos seus frágeis materiais. Se o ovo fosse chato ele se quebraria quando a galinha se deitasse sobre ele, para chocar os pintinhos. Quando eu era pequeno eu e os meus amigos brincávamos de pegar um ovo, ponta fina na palma da mão, ponta grossa contra os dedos pai-de-todos e o seu-vizinho (espero que você tenha aprendido o nome dos dedos, minguinho, seu-vizinho, pai-de-todos, fura-bolo, mata-piolho) e apertar. Pois o ovo não quebrava. Mas não vá fazer essa experiência com esses ovos brancos, de granja. São ovos degenerados. Esses ovos se quebram, só de olhar. A forma do ovo faz com que as forças que sobre ele se exercem não o quebrem. É o mesmo princípio que os arquitetos usam para fazer arcos de janela, de portas e abóbadas gigantescas das catedrais em estilo românico, antes do concreto e do ferro. Se você não sabe o que é o estilo românico, pergunte ao seu professor de história. Aquilo que os arquitetos aprenderam depois de muito pensar, o corpo das galinhas sabe por nascimento, sem precisar pensar.

Mas há ainda um outro assombro: a casca do ovo não pode ser muito mole porque, se fosse, o ovo se quebraria quando a galinha pisasse nele. A casca tem de ser dura o suficiente para suportar o peso da galinha, sem quebrar. Mas a casca também não pode ser muito dura. Como vocês sabem, as galinhas “chocam“ os ovos. Deitam-se sobre eles por 21 dias para, com o seu calor, realizar a transformação da gema em pintinho. Quem foi que ensinou isso para a galinha? Ninguém. O corpo dela nasceu sabendo. A idéia já está lá. Ao cabo de 21 dias os pintinhos estão prontos para sair. Para isso eles têm de quebrar a casca do ovo com o bico. Ora, se a casca do ovo fosse muito dura o pintinho não conseguiria furar a casca e morreria. Como é que a galinha faz esse complicado cálculo físico de resistência de materiais, casca nem muito mole e nem muito dura? Não sei. Só sei que ela sabe. Há um saber no seu corpo que faz cálculos engenhariais exatos.

O nosso corpo é assim: ele sabe muitas coisas que a nossa cabeça não sabe. Se dependêssemos, para viver, dos conhecimentos que temos na nossa cabeça, há muito teríamos desaparecido da terra. O corpo é muito sábio. Acham que estou doido? Vocês já ouviram falar em Guimarães Rosa, o escritor? Pois ele disse: “O corpo não traslada, mas muito sabe, adivinha se não entende...“ Com o que, Nietzsche, o filósofo que mais amo, concorda: “Há mais razão no seu corpo que na sua melhor sabedoria“...

Os gregos antigos, filósofos, diziam que a gente começa a pensar quando a gente fica abobalhado diante de um fato corriqueiro. Haverá coisa mais corriqueira que um ovo? Pois o ovo me faz pensar...

Rubem Alves